Introdução

Um dos cálculos que mais deixa de boquiaberta aqueles que descobrem sua possibilidade se dá assim: 0,999…=1. Alguns explicam tal fenômeno a partir da não-existência de algo entre a dízima 0,999… e o 1. Outros, justamente, nos dão o seguinte cálculo:

X = 0,999…
10.X = 9,999…
10.X = 9,999…- X = 0,999…
9.X = 9
X=9/9
X=1

Além da explicação exotérica, dada nos cursos de matemática imanente (ou apenas matemática, como os modernos entendem), há a explicação esóterica dada a partir da matemática transcendental. Tanto "matemática imanente", com números matemáticos (arithmói mathematikoi ), quanto "matemática transcendental", com números formais (arithmoi arkhai ), são termos pitagóricos, logo, etc. E assim o sendo, os números passam a ser não somente objeto do conhecimento sensível, mas do conhecimento intelectual. Saem do escopo hilético (material) e passam para o escopo eidético (formal).

Número vem de numerus (no latim), que vem do grego nomos (lei, norma, ordem). Em grego, é arithmós, cujo radical é rhe, do verbo rhein (fluir). Como diz Mario Ferreira dos Santos: "há uma analogia, em cujo logos ambos se identificam. O fluxo da criação implica o número". O número seria uma série móvel que jorra (flui) da Mônada. Portanto, arithmós significaria algo que concerne as coisas móveis (que conhecem mutações de quaisquer espécies). Como Mario, ainda, diz:

"A ordem é a relação entre um todo e as suas partes, e se considerarmos que onde há esta relação entre o todo e as partes, há uma certa coerência".

"Para o Mestre [de Samos], o número é também esta ordem, esta coerência que dá fisionomia da tensão de um todo".

E termina:

[O número] é:
•quantidade (arithmós posótes);
•qualidade (arithmós timós);
•relação (arithmós poiá skesin);
•é função (arithmós skesis);
•é lei, ordem, regra (arithmós nómos);
•é processo (arithmós proods, ou kéthados), cujo movimento inverso é conversão (episthrophe) que realiza o retorno efetivo (ánados).

Estes artihmoi surgem dos arithmoi arkhai, e são produzidos (não criados, mas co-eternos e aparecem na processão) pela emanação do Um, e retornam ao Um, depois de se combinarem com outros arithmoi.

Os arithmoi arkhai (de arkhê, supremo) são princípios universais que advém do Um (Ser Supremo emanador de Tudo, ou Deus). Se assim o são, podemos ver a influência pitagórica na doutrina platônica — afinal, Platão mesmo era um pitagórico — no que concerne a teoria das formas (eide) do mesmo. Assim, temos que Platão diz:

"essas ideias se encontram na natureza à maneira de paradigmas; as coisas se lhes assemelham como simples cópias que são, consistindo a participação das ideias com relação às coisas em se assemelharem estas àquelas". (132d).

O que completa o que encontramos no fragmento de Filolau, antigo pitagórico:

"Todas as coisas conhecidas têm um número, porque sem ele não seria possível que nada fosse conhecido nem compreendido".

Como diz MFS: "todas as coisas do mundo cósmico são 'aritmonômicamente' realidades que imitam certos números".

Ainda, esta, a forma, o eidos, o arithmos arkhai, que também é princípio, também procede ao impar e ao par , explica MFS:

o par é apeiron, o ilimitado, porque, entre suas duas partes, resta o nada, enquanto o impar é peras, limitado, porque ao dividi-lo em duas partes iguais, subsiste sempre entre elas uma unidade indivisível, que é o par-ímpar. Passione O número é uma combinação (cum + bini = unir, ordenar duas coisas) do par e do ímpar, da paridade e da imparidade. Sendo o número o esquema da participação, nesta há a paridade entre participante e participado; e a imparidade da participação, pois está se dá apenas de maneira eidética, deixando a hilética para trás.

Assim, o esquema eidético de um triângulo se dá por imitação (no pitagorismo), ou participação (no platonismo), da triangularidade —  triangularizando-se pela proporcionalidade intrínseca que tem. Daí surge o esquema noético-eidético de separar a ideia da coisa pela operação intelectual. Analisar o triângulo sem o esquema noético-eidético se dá pela phantásmata, pela pura intuição sensível, de forma pré-conceitual. Assim, ver um triângulo de relance se dá pela phantásmata, mas reconhece-lo pela sua conceitualização de triangular, por sua triangularidade, é noético-eidético. Por uma explicação melhor, imagine que um raio caindo, o perceber esse raio caindo é a phantásmata, conceituar este raio é noético-eidético.

Assim, o número poderia atuar como um símbolo, dizendo que coisas participam de estruturas geométricas, figuras, números matemáticos e etc. O simbolismo se dá no campo eidético, por exemplo, dizendo que Jesus é um leão (Leo de tribu Iuda) ou um cordeiro (Agnus Dei). Através de um logos analogante entre o que analoga (a propria analogia é uma operação entre equivocidade e univocidade, sendo em uma das coisas analogadas mais parcial, ou segundo a intenção, e em outra mais absoluta, segundo o ser) e o que é analogado. No primeiro exemplo, pode se dizer: Jesus foi imolado assim como os cordeiros eram imolados. O logos analogante aqui se baseia no sacrifício e na remissão dos pecados a partir destes.

Com efeito, a arithmêtikê ou a [meta]mathêmatikê (acrescentei meta por causa da transcendência e do esvaziamento da verdadeira matemática, que hoje é considerada apenas quanto a matemática imanente) busca estudar estes significados e simbologias.

Em penúltimo lugar, deve-se esclarecer que as coisas são números e participam dos números. Por exemplo, Anacleto é (essencialmente); mas também imita uma essência (uma forma, no caso a humana); mas também tem algo que lhe é próprio e lhe caracteriza com um grupo de outros homens (um estado psicológico, por exemplo), o que revela uma essência mais particular em relação com todos os homens em absoluto do que a meramente humana; e Anacleto é seu próprio existir, sendo em Anacleto algo que é sempre ele mesmo, uma individualidade que o mantém sempre essencialmente, que chamamos "alma". Assim, Anacleto é o conjunto destes números que atuam mais essencialmente ou mais acidentalmente.

Por fim, vale lembrar daquela frase que se atribui à Pitágoras: "A matemática é o alfabeto com qual Deus escreveu o universo", que é análoga à frase de Tales de Mileto, um dos mestres de Pitágoras: "tudo está cheio de deuses"; e ambas as frases querem dizer que o mundo é formado por paradigmas eternos e imutáveis. O que não se deve confundir com a realidade última das coisas ser os números, pois esta é o Ser Supremo, que a sustenta e não é número por não participar de outro (os números participam dos atributos deste Ser Supremo). E convém que Tales de Mileto diga que os números, eidos, formas, etc., são deuses pois, como diz Proclo, filósofo neoplatônico:

Uma coisa é simplesmente um Deus, outra segundo a união, outra segundo a participação, outra segundo o contato e outra segundo a semelhança.

Tornando ao cálculo

0,999… = 1, pois:

X = 0,999…
10.X = 9,999…
10.X = 9,999…- X = 0,999…
9.X = 9
X=9/9
X=1

Podemos perceber que o 0,999… resulta no Um, i.e., retrocede e regride, retorna ao Um de forma que usamos o 10 (década) para demonstrar tal e trazer isso à luz. Na verdade, o dez é a própria Luz que trás para a demonstração (de, para fora, monstrare, mostrar).

Temos então que: 0,Enéada -> Década -> Mônada.
Ou, ainda: Década/Enéada -> Década -> Mônada.

A Enéada é o limite insuperável, que marca o fim das formações específicas, pois, por exemplo, depois da nona nota (9:8) não há mais razão musical. Descrevem-na como "Terpsichore" (trepein = girar + chorus= dançar), pois seu giro do início para o ponto médio e para o final (inicio-começo-fim) é como uma dança. Sendo assim, não permite que a harmonia dos números se dissipe para além, fazendo com que eles entrem em concordância, sendo assim chamada por isso mesmo, "concordância" ou "harmonia", por "limitação" e por "sol" (helios, halios, sol, está ligando com halizein, reunir-se). É três vezes perfeita, tendo um número triangular como sua raiz, pois 3x3 = 9 e 3 é um número perfeito, essa consideração se deve ao fato do três ser o primeiro número impar e ser a soma da díada com a mônada, ou por ser o primeiro objeto plano, ou por significar começo-meio-fim (que são causas de toda perfeição já alcançada), as vezes se diz "três vezes algo" (como em Hermes Três Vezes Grandes), que significa que aquele algo atua de maneira perfeita. Assim, ela simboliza a Homogeneização (equilíbrio, uniformização, unidade) no Todo da heterogeneidade (diferença, multiplicidade) de Tudo.

A questão de existir um decimal, representado por 0, unido à Enéada se dá da seguinte forma: o zero representa o uno não-participado, pois se se multiplicar ou dividir 0 por qualquer número que seja, o resultado permanece 0. Com efeito, o 0,999… representa o infinito posterior ao Infinito Primeiro (Um Monas, Μονας, Deus Essencial) que, ainda, participa deste de alguma forma. Representamos o cálculo assim: 0, + Enéada + infinito = 0,999...

A mônada é um número não-espacial, simples e estável, por preservar a identidade do número (3x1= 3, etc), portanto imutável, sem alteridade. Por ser o primeiro dos números, há de gerá-los e contê-los seminalmente (inspirando), fazendo alusão ao que é primeiro, que é causa, como o Primeiro Motor Imóvel — Anatólio a chama de "matriz" ou "substância" por isso, os pitagóricas a chamavam de Caos, que Hesiodo descreveu da mesma maneira, e os gregos a representavam pelo símbolo "α" (Alfa). É um número ilimitado (par) e limitado (impar). Por estes motivos é traduzida como Deus Essencial (Um Monas, Μονας), que não deve ser confundindo com Deus Não-Participado (Um, Hen, ἕν), que é mais simbolizado pelo 0.

Por fim a década é chamada de todos, pois não há numero natural maior que ela, se pensarmos bem os números voltam a ela, por exemplo 10x10, 100x10, etc., e todos os números se repetem e retornam para algum dos que estão dentro da década. É chamada de destino, pois não há atributos que não são semeados na década e não se estendem passo a passo na década. O destino é como se fosse um resultado conectado e ordenado. É chamada de eternidade pois trás tudo à plenitude. Segundo Filolau é graças à década e suas partes que temos segurança da verdade, por isso ela é chamada de verdade também. Por isso pode ser chamada de memória, pois a mônada também é memória por ser fonte da sabedoria. Alguns teólogos antigos diziam que a Necessidade ocupa a borda mais remota de todo o céu, e perpetuamente impulsiona e incita toda a rotação com um chicote incansável, como diz Platão:

"Pois essa luz era, propriamente, a faixa do céu, à maneira do cinto das trirremes (barco), e que desse modo sujeitava todo o círculo do universo. De suas pontas pendia o fuso da Necessidade, que punha em movimento todas as esferas". (616c)

Dessa forma, a Década é também chamada de Necessidade, pois circunscreve tudo, mistura tudo e separa tudo, imbuindo as coisas de continuidade e mudança. Encontramos essa razão em uma sentença da prece pitagórica: "(…)o Dez Sagrado, que detém a chave de todas as coisas".

Significado Último

Seguindo o que foi falado anteriormente, a conclusão é mais que óbvia: este cálculo significa que o infinito segundo retorna ao Infinito Primeiro através da iluminação da luz da Necessidade e do Destino, pois tudo está ordenado pelo Um e para o Um, fazendo com que nada seja inteiramente separado dele e sempre retroceda a ele através da conversão (episthrophe) até finalmente o retorno efetivo (ánados). Em suma: significa que todo infinito retorna ao infinito primeiro.

Bibliografia

FERREIRA DOS SANTOS, Mario. Pitágoras e o Tema do Número.

Platão, Parmênides.

Iamblichus, Teologia da Aritmética.

FERREIRA DOS SANTOS, Mario. Tradução e Comentários às categorias de Aristóteles.

Proclus, Teologia Platônica.

FERREIRA DOS SANTOS, Mario. Tratado de Simbólica.